Cinemateca e mobilização

Foto: Jose Cordeiro/SPTuris

Talvez seja um sintoma da desmobilização completa dos agentes de cultura o fato de o apelo que o Zé Celso Martinez Correa lançou pela Cinemateca ter despertado tão pouco entusiasmo.

Eu tenho a impressão de que a preservação da Cinemateca tem um apelo forte: não se trata de cineastas pedindo dinheiro, nem leis de proteção, nem tudo que o governo atual abomina, inclusive a cultura em geral.

E no entanto eu sei que não existe quem não esteja preocupado com essa história, já que o objetivo evidente do governo é estrangular toda cultura que não seja bíblica.

No entanto, a visada do Zé Celso é a melhor possível. A Cinemateca está jogada às traças. Ninguém se importa. Mas quando aquilo pegar fogo e levar para os ares tudo que conhecemos do século 20 (e 21) brasileiro, todas as imagens mais relevantes desse tempo, bem aí virá o habitual cortejo de choro e lamentos e de um jogando a culpa no outro.

A Cinemateca é o que há de mais evidente como lugar de reivindicação. Não pedimos nada para o presente, mas para a memória. Ela não é boa nem ruim. Nem ao menos é “ideológica”, para usar o termo caro ao governo central.

No Museu Nacional, a estrutura pegou fogo por falta ou ausência de manutenção e depois os objetos. Na Cinemateca, o fogo pode também começar pelo material e depois passar aos prédios.

A Cinemateca é um bem que está além de interesses imediatos. Defendê-la me parece uma dessas bandeiras insofismáveis, necessárias, inadiáveis.

Resposta

Uma resposta à questão lançada pelo Zé Celso veio do Carlos Augusto Calil, ex-presidente (ou diretor-geral, não me lembro do nome exato) da Cinemateca, ex-conselheiro (ou ainda conselheiro), mais do que tudo um defensor da obra de Paulo Emílio.

Ele envia uma Notificação Extrajudicial assinada por ele e Lygia Fagundes Telles ao ministério da Cultura, ainda dos tempos Temer e que ficou sem resposta.

Calil não é propriamente um otimista (não só em relação ao destino da Cinemateca). Mas diz que, para ele, a Cinemateca, tal como concebida por Paulo Emilio, está morta.

Não sei. Isso depende de quem depositou seus negativos e positivos por lá pensarem direito no assunto, formarem uma comissão, um movimento, algo assim e mandarem bala.

A Cinemateca não é uma causa do cinema, nem do presente, nem “da classe”, mas começa por aí.

Abaixo, o texto:

NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL

Ao Exmo. Sr. Ministro de Estado da Cultura Sérgio Sá Leitão

c/c: Sra. Secretária Executiva Cláudia Pedrozo e

Sr.Secretário do Audiovisual Frederico Maia Mascarenhas

Esplanada dos Ministérios, Bloco B

CEP 70068-900 – Brasília, DF

 Ref.: Descumprimento das salvaguardas de autonomia da Cinemateca

LYGIA FAGUNDES TELLES, brasileira, escritora, desquitada, portadora da carteira de identidade RG nº 498.851 e inscrita no CPF/MF sob o nº 083.889.468-20, residente e domiciliada na Rua da Consolação, nº 3563, apartamento 131, CEP 01416-001, São Paulo, SP, e CARLOS AUGUSTO MACHADO CALIL, brasileiro, divorciado, professor universitário, portador da carteira de identidade RG nº 3.710.175-4 e inscrito no CPF/MF sob o nº 563.422.418-72, residente e domiciliado na Rua Desembargador Joaquim Barbosa de Almeida, nº 488, CEP 05463-010, São Paulo, SP, juntamente com os demais subscritores abaixo identificados, procedem à presente NOTIFICAÇÃO pelas razões e para a finalidade seguintes:

Como é de conhecimento público e de acordo com a escritura pública lavrada em 14/02/1984, no 17º Tabelionato de Notas da Capital do Estado de São Paulo, arquivada no Livro 2088, fl. 254 (cópia anexa), a Cinemateca Brasileira se originou da incorporação da Fundação Cinemateca Brasileira, à época uma entidade privada, pela Fundação Nacional Pró-Memória, vinculada ao então Ministério da Educação e Cultura, a qual, por sua vez, foi, posteriormente, incorporada ao Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural entre 1990 e 1994, quando este foi renomeado Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, que passou, assim, a abrigar a Cinemateca em sua estrutura. Por fim, no ano de 2003, a Cinemateca passou à esfera da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura.

Observe-se que já na escritura pela qual foi incorporada à Administração Pública Federal foram estabelecidas salvaguardas visando a assegurar a autonomia técnica, administrativa e financeira da Cinemateca Brasileira, inclusive pela previsão da existência de um Conselho Consultivo, constituído, originalmente, por 5 (cinco) membros natos e outros 35 (trinta e cinco) eleitos pelo próprio Conselho.

Contudo, tais salvaguardas não vêm sendo observadas por atos e normas baixadas pelo Ministério da Cultura, tal como a Portaria nº 51, de 02/05/2018, que institui o Conselho Consultivo da Cinemateca Brasileira em termos absolutamente incompatíveis com a autonomia estabelecida na escritura de incorporação, ainda que, curiosamente e ignorando a Portaria nº 51/2018, o site da Cinemateca apresente a composição do Conselho cujo mandato expirou em 2013 e desde então não foi renovado.

Além disso, a organização social Associação Comunicativa Roquette Pinto, contratada para a gestão da Cinemateca, nomeou uma nova Diretoria sem consulta ao Conselho, promovendo uma reestruturação de forma evidentemente violadora à autonomia técnica e administrativa do órgão. Embora editado pelo Presidente da República, o Decreto 9.411, de 18/06/2018, que reestrutura o quadro de cargos do Ministério da Cultura, é também revelador da incúria devotada pelo Governo Federal à Cinemateca, que já havia sido configurada na omissão da Secretaria do Audiovisual diante do incêndio de 3 de fevereiro de 2016, que destruiu mil rolos de filme em nitrato de celulose, e agora reiterada no referido decreto em que a Cinemateca Brasileira nem mais consta da estrutura do Ministério da Cultura e nem mereceu nenhum cargo público comissionado. O mesmo descaso que determinou a supressão, no site da Cinemateca, da logomarca da instituição, criada em 1954 por Alexandre Wollner, um dos mais importantes designers brasileiros.

Assim, é a presente NOTIFICAÇÃO para requerer a revogação dos atos (inclusive daqueles praticados pela Organização Social Associação Comunicativa Roquette Pinto) e normas que violem a autonomia técnica, administrativa e financeira asseguradas na escritura de incorporação da Fundação Cinemateca Brasileira, em especial da Portaria nº 51, de 02/05/2018, além de:

  1. Constituição de novo Conselho Consultivo com observância à necessária autonomia do órgão;
  2. Reconhecimento formal pelo atual Governo da peculiar situação da Cinemateca Brasileira convalidando sua autonomia decorrente da mencionada incorporação ocorrida em 1984, que constou da Determinação n. 303, de 16 de julho de 1987 da Presidência da Fundação Nacional Pró-Memória, que aprovou o Regimento Interno da Cinemateca Brasileira, posteriormente ratificado pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional;
  3. Retorno da Cinemateca Brasileira à estrutura do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.

De São Paulo para Brasília, 11 de setembro de 2018.

Lygia Fagundes Telles

Carlos Augusto Machado Calil

A notificação é subscrita pelos membros  remanescentes do último Conselho da Cinemateca, Ugo Giorgetti e Arthur Autran e ainda por João Batista de Andrade, Francisco Ramalho, Sergio Muniz.

 

Um comentário em “Cinemateca e mobilização

  1. Trabalho próximo do enorme galpão da Cinemateca Brasileira, na Vila Leopoldina, zona oeste da capital. Não tenho como deixar de sentir o cheiro de vinagre que sai pelas janelas do prédio onde estão depositadas milhares de latas de filmes e negativos. Uma lástima!!!

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